sexta-feira, 28 de abril de 2017

Sinais - Um filme de M. Night Shyamalan



















Informações Sobre o Filme
Gêneros: Drama, mistério, ficção científica e thriller.
País: Estados Unidos da América.
Lançamento: 2 de agosto de 2002 (EUA), 20 de setembro de 2002 (Brasil).
Orçamento: U$ 72.000.000.
Receita Bruta: U$ 227.965.690 (EUA, 31 de janeiro de 2003).
Duração: 1 h 46 min.
Nota no IMDb: 6,7.

É bem comum vermos notícias sobre assuntos ufológicos, como OVNIS, circulo em plantações, principalmente com o avanço da internet, diariamente surgem fotos, vídeos e declarações do gênero. Sinais, um filme de 2002, escrito e dirigido pelo cineasta indiano naturalizado estadunidense M. Night Shyamalan (O Sexto Sentido, Corpo Fechado, Fragmentado), dramatiza um evento onde desenhos misteriosos e altamente precisos e esquematizados surgem na plantação de milho do ex-padre viúvo Graham Hess (Mel Gibson), que vive em sua fazenda no condado de Bucks, no estado americano da Pensilvânia, junto com seu casal de filhos Morgan (Rory Culkin) e Bo (Abigail Breslin) e também com seu irmão mais novo Merrill Hess (Joaquin Phoenix).



Enquanto investigam quem seria o "artista" dos símbolos no milharal, que consideravam ser um invasor da fazenda, descobrem que o fenômeno está acontecendo em diversas cidades do mundo. A trama se desenvolve revelando que alienígenas são os responsáveis por aqueles agroglifos. Dá-se, então, uma invasão dos extraterrestres, os quais têm objetivos não totalmente revelados, havendo apenas suposições dos personagens, sobretudo de Morgan. A família tranca-se no porão de sua casa almejando se proteger dos alienígenas, durante sua permanência no porão, Morgan, que é bem inteligente e preocupado em cuidar de sua irmã mais nova, sofre crise de asma e, para complicar a trama, não carrega consigo seu medicamento para sua enfermidade, seu pai tenta o ajudar a respirar, enquanto revela sua revolta contra o seu Deus que antes servia como padre, culpando-o pela morte de sua esposa e pela desgraça que temia acontecer.

A fotografia do filme adéqua-se muito bem às paisagens rurais do condado de Bucks, conferindo um ar de simplicidade e calmaria nas cenas da família causada pela claridade elevada, principalmente nas cenas fora da casa. É interessante mencionar que as cenas do porão são totalmente opostas, a luminosidade é escassa pela necessidade de poupar pilhas das lanternas e por Marrill ter quebrado a lâmpada incandescente involuntariamente, sugerindo que poderia ser a intensão do diretor fazer um contraste luminoso entre diferentes partes do filme. O ótimo trabalho da fotografia do filme ficou na responsabilidade do diretor de fotografia Tak Fujimoto. A trilha sonora é bem evolvente e a principal fonte do suspense no longa. Trechos dela são mais suaves e causam um breve e equivocado relaxamento do espectador, enquanto trechos de tensão surgem e preenchem as cenas com suspense e ansiedade. O compositor musical do filme é  James Newton Howard. 

O Filme é uma ficção científica, onde há alguns diálogos e atitudes que flertam com o  humor e se encaixam bem nas cenas, partindo sempre de Marrill e Bo. Ao longo do filme, a história da morte da esposa do Graham é contada dividida em diversos flash backs, servindo como uma explicação para o sentimento de angústia e descrença ou revolta para com Deus. Durante todo o filme, há diversas cenas que contribuiem para a solução da problemática do filme, nas quais Bo expressa ter um tipo de TOC com a água, deixando diversos copos contendo água sobre os móveis, espalhados pela casa. 

Ao término do filme, a família é salva por água dos copos deixados por Bo espalhados pela casa, pois os invasores eram vulneráveis à água, de modo nocivo ou mesmo letal, fato que Marrill utilizou para salvar Morgan de uma ataque do último alienígena remanescente da sua espécie na terra (pois os aliens bateram em retirada do planeta). Como Morgan estava passando pela crise de asma, o ataque (jato de veneno lançado contra o rosto) proferido pelo alien ao menino, não penetrou suas vias aéreas, logo, não foi eficaz contra o garoto. A partir de então, Graham passou a acreditar que Deus estava cuidando de todos eles, e havia impedido a morte de seu filho; isso fez com que o homem retornasse à sua fé e à igreja como padre.



Muitos críticos consideram que o diretor utilizou o recurso conhecido como Deus ex machina para resolver a problemática do filme. Conferindo uma falta de criatividade ao fato de os alienígenas serem suscetíveis à água e a garotinha Bo deixar água espalhada pela casa para poder ser usada para combater o alien agressor o final do filme. Minha simples visão é que o diretor quis buscar uma alternativa simples e não-planejada para resolver a situação, deixando uma subjetividade para o espectador, poderia ser que aquela mania da garotinha fosse ainda um "cuidado" (palavra usada aqui no sentido usado por Graham, no filme) de Deus para solucionar o problema, assim como a crise de asma de Morgan (como aos olhos de seu pai).

O filme é bastante recomendado para quem gosta de filmes com a temática ufológica, pois utiliza recursos clássicos como as luzes no céu e os símbolos nas plantações, mas de uma forma que não se classificaria como clichê, e ainda são utilizados na medida correta apenas como uma necessidade construtiva de exposição para o enredo e não de forma forçada. O filme conta com a clássica participação do diretor atuando como um personagem - o homem que dormiu ao volante e matou a esposa de Graham Hess, Ray Reddy.

Trailer



Parabéns pelo seu interesse em conhecer uma nova (hi)(e)stória e em aprender algo novo, volte sempre!
Deus seja louvado!!!
 DMSF

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Do Além – H.P. Lovecraft

Um conto de H.P. Lovecraft
Tradução de Renato Suttana


Horrível, para além de qualquer concepção, foi a mudança por que passou meu melhor amigo, Crawford Tillinghast. Eu não o vira desde aquele dia, dois meses e meio antes, quando ele me falou da meta em direção à qual suas pesquisas físicas e metafísicas se encaminhavam e quando respondeu à minha demonstração de espanto e medo expulsando-me de seu laboratório e de sua casa num estouro de raiva fanática. Eu sabia que ele agora passava a maior parte do tempo fechado em seu laboratório no sótão com aquela maldita máquina elétrica, comendo pouco e afastado até dos próprios criados, mas não pensara que um período tão breve de dez semanas pusesse alterar e desfigurar de tal maneira uma criatura humana. Não há prazer em ver um homem garboso tornar-se magro de repente, e é pior ainda quando a pele flácida começa a amarelar ou a acinzentar, os olhos fundos, esgazeados, brilhando de modo sobrenatural, a testa enrugada e coberta de veias, e as mãos trêmulas e contorcidas. E se, adicionado a isso, houver um desalinho repulsivo, uma desordem louca do vestir, moitas de cabelos escuros esbranquiçados na raiz, e uma sombra de barba não aparada sobre um queixo que sempre fora cuidadosamente barbeado, o efeito cumulativo será chocante. Mas esse era o aspecto de Crawford Tillinghast na noite em que sua mensagem pouco coerente me trouxe até sua porta depois de semanas de exílio. Tal era o espectro que tremia enquanto me fazia entrar, uma vela na mão, a olhar furtivamente por sobre o ombro, como se receoso de coisas invisíveis na casa antiga e solitária, situada ao fundo da Benevolent Street.

Para Crawford Tillinghast, ter um dia estudado ciência ou filosofia fora um erro. São coisas que deveriam ser deixadas para o investigador impessoal e frio, pois oferecem duas alternativas igualmente trágicas ao homem de sentimento e ação: desespero, se fracassa em sua busca, e terrores indizíveis e inimagináveis, se obtém sucesso. Tillinghast fora presa uma vez do fracasso, da reclusão e da melancolia; mas agora eu sabia, entre receios repelentes de minha parte, que ele era presa do sucesso. De fato, eu o tinha alertado, duas semanas antes, quando aventou, num ímpeto, a história do que estava prestes a descobrir. Tornara-se vermelho e excitado, falando num tom de voz muito alto e antinatural, embora sempre pedante.

“O que sabemos”, ele dissera, “sobre o mundo e o universo ao nosso redor? Nossos meios de receber impressões são absurdamente escassos, e nossas noções dos objetos que nos cercam são infinitamente estreitas. Vemos as coisas somente na medida em que somos construídos para vê-las e não podemos fazer idéia alguma de sua natureza absoluta. Com cinco débeis sentidos, queremos compreender o cosmos ilimitadamente complexo, enquanto outros seres, com uma gama de sentidos diferente, mais ampla ou mais possante, não apenas poderiam ver de modo diferente as coisas que vemos, como também ver e estudar mundos inteiros de matéria, energia e vida que jazem próximos de nós, mas que não podem ser detectados com os sentidos que temos. Sempre acreditei que tais mundos estranhos e inacessíveis existem colados aos nossos cotovelos, e agora creio que encontrei um modo de romper as barreiras. Não estou blefando. Dentro de vinte e quatro horas aquela máquina sobre a mesa gerará ondas que agirão sobre órgãos
ignorados de sentidos que existem em nós como vestígios atrofiados ou rudimentares. Essas ondas abrirão para nós inúmeros panoramas desconhecidos do homem e muitos desconhecidos de qualquer coisa que consideramos como vida orgânica. Haveremos de ver aquilo para o qual os cachorros uivam na escuridão, aquilo para o qual os gatos levantam suas orelhas após a meia noite. Veremos essas coisas e outras coisas que nenhuma criatura que respira jamais viu. Vamos saltar sobre o tempo, o espaço e as dimensões e, sem mover nossos corpos, espiar o fundo da criação.”

Quando Tillinghast disse essas coisas, não disfarcei, pois conhecia-o bem o suficiente para ter muito mais receio do que admiração; mas ele era um fanático e expulsou-me da casa. Agora ele não era menos fanático, mas seu desejo de falar sobrepujara o ressentimento, e ele me escrevera num tom imperativo, com uma caligrafia quase ilegível. Quando penetrei na casa desse amigo tão subitamente metamorfoseado numa gárgula vacilante, infectou-me o terror que parecia espreitar em meio a todas as sombras. Era como se as palavras e crenças expressas dez semanas antes se encarnassem na escuridão que cercava o pequeno círculo de luz da vela, e senti-me mal diante da voz oca e alterada de meu anfitrião. Desejei que os criados estivessem por perto e não gostei quando ele disse que todos tinham deixado a casa havia três dias. Pereceu estranho que o velho Gregory, ao menos, pudesse desertar de seu senhor sem dizer isso a um amigo tão próximo como eu. Era ele que me dava toda a informação que tive sobre Tillinghast depois que, furioso, este me expulsou.

Fonte: ameninadosofa.blogspot.com.br
  
No entanto, logo obriguei meus medos a se subordinarem à minha curiosidade e fascinação. O que é que Crawford Tillinghast queria de mim agora eu podia até conjeturar, mas de que ele tinha algum segredo ou descoberta estupenda para revelar, disso eu não duvidava. Antes eu protestara contra sua perquirição indiscreta do impensável, e agora que ele evidentemente tivera algum tipo de sucesso eu quase compartilhava seu espírito, por mais terrível que pudesse ser o custo da vitória. Seguindo a luz vacilante da vela que a mão daquela paródia trêmula de homem segurava, subi em direção à escuridão vazia da casa. A eletricidade parecia ter sido desligada, e quando perguntei ao meu guia ele disse que era por um motivo definido.

“Seria demais… Eu não ousaria”, ele continuava a murmurar. Notei em especial esse seu novo hábito de murmurar, pois não era do seu feitio falar sozinho. Entramos no laboratório no sótão, e observei aquela detestável máquina elétrica a cintilar com uma luminosidade doentia, sinistra, violeta. Estava conectada a uma potente bateria química, mas não parecia receber corrente, pois eu me lembrava de que em seu estágio experimental ela tinha roncado e ciciado quando posta em ação. Em resposta à minha pergunta, Tillinghast sussurrou que esse brilho permanente não era elétrico em nenhum sentido que eu pudesse entender.

Ele me fez sentar próximo à máquina, de modo que ela ficou à minha direita, e acionou um comutador que ficava por baixo de uma profusão de bulbos de vidro. Os estralejos usuais começaram, tornaram-se um gemido, e terminaram num rumor monótono e tão suave que dava impressão de retornarem ao silêncio. Entrementes a luminosidade aumentou, diminuiu, até assumir uma tonalidade pálida e inusitada ou uma mistura de cores que eu não poderia situar ou descrever. Tillinghast tinha estado a me observar, notando minha expressão de perplexidade.

“Sabe o que é isso?”, murmurou, “Isso é ultravioleta”. E gargalhou ao ver a minha surpresa. “Pensou que o ultravioleta era invisível, e é – mas você pode vê-lo e a muitas outras coisas agora. Ouça-me! As ondas dessa coisa estão despertando em você mil sentidos adormecidos – sentidos que você herdou de éons de evolução, desde o estado dos elétrons errantes até o estado da humanidade orgânica. Eu vi a verdade, e pretendo mostrá-la a você. Faz idéia de como ela se parece? Vou dizê-lo a você.” Aqui, Tillinghast se sentou também, de frente para mim, segurando sua vela e olhando-me perversamente nos olhos. “Seus órgãos sensórios existentes – ouvidos primeiro, suponho – captarão muitas das impressões, pois estão intimamente conectados com os órgãos adormecidos. Então haverá outros. Já ouviu falar da glândula pineal? Rio-me dos ingênuos endocrinologistas, pretensiosos e comparsas iludidos dos freudianos. Essa glândula é o órgão sensório por excelência – eu o descobri. É como uma visão, afinal, e transmite imagens visuais ao cérebro. Se você é normal, esse será o modo como você obterá a maior parte... Refiro-me à maior parte da evidência do além.”

Olhei em volta o imenso sótão com a parede alta ao sul, obscuramente iluminada por raios que os olhos cotidianos não poderiam ver. Os cantos mais distantes eram pura sombra, e o lugar inteiro mergulhava numa irrealidade nevoenta que obscurecia sua natureza e convidava a imaginação ao simbolismo e à fantasmagoria. Durante o longo intervalo em que Tillingthast permaneceu em silêncio, tive um devaneio de estar num incrível e vasto templo de deuses há muito desaparecidos, num edifício vago de inúmeras colunas de pedra negra que se elevavam de um piso de lajes úmidas até alturas de nuvens que ficavam para além da minha visão. A imagem me pareceu bastante vívida por algum tempo, mas gradualmente deu lugar a uma concepção mais horrível – aquela da solidão extrema e absoluta do espaço infinito, inescrutável e silencioso. Parecia haver um vazio e nada mais, e senti um medo infantil que me fez sacar do bolso junto ao peito um revólver que passei a carregar desde que fora assaltado em East Providence. Então, das mais distantes regiões do remoto, o som deslizou suavemente para dentro da existência. Era infinitamente débil, sutilmente vibrante, e inequivocamente musical, mas continha um não sei quê de indizivelmente selvagem que fazia com que o seu impacto parecesse uma tortura delicada de todo o meu corpo. Vieram-me sensações que eram como se alguém pisasse vidro moído no chão. Simultaneamente, desenvolveu-se alguma coisa como um sopro frio, que aparentemente passava por mim vindo do som distante. Enquanto, sem fôlego, aguardava, percebi que tanto o som quanto o vento estavam aumentando, o efeito assemelhando-se ao de ter sido atado a um par de trilhos no caminho de uma gigantesca locomotiva que se aproximasse. Comecei a falar a Tillinghast e, quando o fiz, todas as impressões incomuns se desvaneceram abruptamente. Vi apenas o homem, as máquinas cintilantes e o cômodo penumbroso. Tillinghast ria de um jeito repulsivo para o revólver que eu sacara quase inconscientemente, mas pela sua impressão compreendi que ele tinha visto e ouvido tanto quanto eu, se não muito mais. Murmurei o que eu tinha experimentado, e ele me instruiu para que permanecesse o mais quieto e receptivo possível.

“Não se mova”, advertiu, “pois nesses raios tanto podemos ver quanto ser vistos. Eu lhe
disse que os servos foram embora, mas não lhe disse como. Foi aquela governanta de cabeça dura; ela acendeu as luzes no térreo depois que eu avisei para não fazer isso, e os arames captaram vibrações empáticas. Deve ter sido amedrontador – pude ouvir os gritos daqui de cima, a despeito de tudo o que via e ouvia vindo de outra direção, e mais tarde foi pavoroso encontrar aqueles montes vazios de roupas por toda a casa. As roupas da senhora Updike estavam próximas do comutador de luz da sala – eis como eu soube que ela o fizera. Pegou-os a todos. Mas, desde que não nos movamos, estamos razoavelmente seguros. Lembre-se de que estamos lidando com um mundo medonho no qual somos praticamente indefesos... Fique quieto!
O choque combinado da revelação e da intimação abrupta deu-me um tipo de paralisia, e no terror minha mente se abriu de novo para as impressões que vinham do que Tillinghast chamou de “além”. Um vórtice de som e movimento me envolvia agora, imagens confusas surgindo diante de meus olhos. Eu via os contornos imprecisos do cômodo, mas de algum ponto do espaço parecia jorrar uma coluna fervilhante de formas irreconhecíveis ou de nuvens, penetrando no teto sólido num ponto adiante, à minha direita. Então vislumbrei o templo – como efeito novamente, mas desta vez os pilares subiam em direção a um oceano aéreo de luz, o qual despejava um raio de luz ofuscante por todo o caminho da coluna de nuvens que eu vira antes. Depois disso, a cena tornou-se quase inteiramente caleidoscópica, e na profusão de visões, sons e impressões sensoriais não identificadas, senti que estava prestes a me dissolver ou, de algum modo, a perder a forma sólida. De um determinado lance eu hei de me lembrar para sempre. Pareceu-me ter visto, por um instante, uma nesga de estranho céu noturno repleto de esferas cintilantes e rodopiantes, e quando desapareceu vi que os sóis brilhantes formavam uma constelação ou galáxia de forma definida, sendo essa forma o rosto distorcido de Crawford Tillinghast. Noutra ocasião, senti que as coisas imensas e animadas se arrastavam para além de mim e às vezes caminhavam ou vogavam através do meu corpo supostamente sólido, e pensei ter visto Tillinghast olhar para elas como se seus sentidos mais bem treinados pudessem captálas visualmente. Lembrei-me do que ele dissera acerca da glândula pineal e me perguntei o que ele via com esse olho sobrenatural.

De súbito, senti-me também possuído por uma espécie de visão aumentada. Por cima e ao longo do caos luminoso e sombrio se elevava uma imagem que, embora vaga, continha elementos de consistência e permanência. Era de fato algo familiar, pois a parte incomum estava superposta à cena comum e terrestre, tal como uma imagem de cinema se pode projetar sobre a cortina pintada de um teatro. Vi o laboratório do sótão, a máquina elétrica e a forma indistinta de Tillinghast em frente a mim, mas de todo o espaço não ocupado por objetos familiares sequer a menor porção estava vaga. Formas indescritíveis, vivas ou não, se misturavam numa desordem repulsiva, e perto de cada coisa conhecida havia mundos inteiros de entidades alienígenas e ignotas. Igualmente, parecia que todas as coisas conhecidas entravam na composição de outras coisas desconhecidas e vice-versa. Mais à frente, entre os objetos vivos, havia monstruosidades pretas, semelhantes a medusas, que estremeciam languidamente com as vibrações da máquina. Manifestavam-se numa profusão nauseante, e eu vi, para o meu horror, que se imbricavam, que eram semifluidas e capazes de passar através umas das outras e daquilo que conhecemos como sólidos. Essas coisas jamais paravam; antes: pareciam flutuar sempre com algum propósito maligno. Às vezes, davam mostras de devorar-se umas às outras, o atacante lançando-se sobre sua vítima e instantaneamente fazendo-a desaparecer de vista. Trêmulo, entendi o que tinha feito desaparecer os infelizes criados, e não podia expulsar a coisa de minha mente enquanto lutava para observar outras propriedades do mundo, há pouco tornado visível, que existe incógnito à nossa volta. Mas Tillinghast tinha estado a me observar e agora falava.

“Você as vê? Você as vê? Vê as coisas que flutuam e se precipitam à sua volta a cada momento de sua vida? Vê as criaturas que formam o que os homens chamam de ar puro e de céu azul? Não tive sucesso em romper a barreira, não mostrei a você mundos que os outros homens jamais chegaram a ver?” Ouvi seu grito através do horrível caos e olhei para a face selvagem que tão ofensivamente se colava à minha. Seus olhos eram poços de chamas e me fitavam com aquilo que – logo entendi – era apenas o mais profundo ódio. A máquina ronronava de maneira horrorosa.

“Pensa que essas coisas rastejantes arrebataram os criados? Tolo, são inofensivas! Mas os criados desapareceram, não é? Você tentou me impedir, você me desencorajou quando precisei de cada gota de incentivo que pudesse obter. Você teve medo da verdade cósmica, seu maldito covarde, mas agora eu o peguei! O que foi que levou os criados? O que os fez berrar tão alto?... Não sabe, hein? Logo, logo saberá. Olhe para mim – ouça o que eu digo. Supõe você que existem mesmo tais coisas como tempo e magnitude? Acredita mesmo que existem tais coisas como forma e matéria? Eu lhe digo, você atingiu profundidades que o seu pequeno cérebro não pode conceber. Vi para além das fronteiras do infinito e arrastei demônios das estrelas... Conduzi as sombras que perambulam de mundo para mundo para semear a morte e a loucura... O espaço me pertence, está me ouvindo? As coisas estão à minha caça agora – as coisas que devoram e dissolvem –, mas eu sei como ludibriá-las. É a você que elas pegarão, como fizeram com os criados... Está tremendo, caro senhor? Eu lhe disse que era perigoso mover-se, coloquei-o a salvo dizendo que se mantivesse quieto – salvei-o para ter mais visões e para me ouvir. Se você tivesse se movido, eles já teriam se atirado sobre você há muito tempo. Não se preocupe, não vão machucá-lo. Não machucaram os criados – foi apenas ver que os fez berrar daquele jeito. Meus bichinhos não são bonitos, pois vêm de lugares onde os padrões estéticos são... muito diferentes. Eu quase os vi, mas soube como parar. Você é curioso? Sempre soube que você não era um cientista. Tremendo, hein? Tremendo de ansiedade para ver as últimas coisas que descobri. Por que não se move, então? Cansado? Bem, não se preocupe, amigo, pois elas estão vindo… Olhe, olhe, amaldiçoado, olhe… Está bem em cima do seu ombro esquerdo.”

O que falta contar é bem pouco, e vocês talvez já tenham sabido por meio dos jornais. A
polícia ouviu um tiro na velha casa de Tillinghast e nos encontrou lá – Tillinghast morto, e eu, inconsciente. Prenderam-me, porque o revólver estava em minha mão, mas soltaram-me dentro de três horas, pois descobriram que foi a apoplexia que acabou com Tillinghast e viram que meu tiro tinha sido disparado contra a máquina perversa que agora jaz irremediavelmente destroçada no chão do laboratório. Não contei muito do que vi, pois temi que o coronel ficasse cético, mas, pela descrição evasiva que dei, o médico me disse que, sem dúvida, eu tinha sido hipnotizado pelo louco vingativo e homicida.

Quem dera eu pudesse acreditar no médico. Seria bom para os meus nervos se eu pudesse pôr de lado o que agora tenho de pensar sobre o ar e o céu que me envolvem e que estão acima de mim. Nunca me sinto sozinho e confortável, e um senso horrível e arrepiante de perseguição às vezes me invade quando esmoreço. O que me impede de acreditar no médico é apenas este fato: que a polícia nunca encontrou os corpos dos criados que, segundo dizem, Crawford Tillinghast assassinou.


***

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Este conto está em domínio público. Para a Biografia do Autor acesse o site brasileiro que se dedica à vida e obra de H. P. Lovecraft, clicando aqui.

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DMSF

sexta-feira, 21 de abril de 2017

O Juramento - Humberto de Campos

- Nunca mais, meu prezado senhor, tive tranqüilidade na minha vida; e vinte séculos que viva, vinte existências que tenha na terra, serão para pagar com o remorso de cada dia, ou, antes, de cada noite, o horror daquela vingança!
~ "Cap Finisterre" havia deixado, na véspera, o porto do Havre, quando travamos relações, eu e aquele cavalheiro, no "bar" do navio. Era um homem velho, magro, de grande ossatura, tipo de Quixote dos Pampas, a que não faltava, sequer, a barbicha comprida e rala, suja como a dos bodes. Não obstante os meses passados no clima suave da Europa, a sua pele conservava aquela tonalidade escura e áspera das feias do vento e do sol. Os olhos, miúdos, vivos, desconfiados, escondiam-se órbitas fundas, sob as sobrancelhas pesadas, como duas onças em duas furnas, mascaradas de erva grosseira. Chamava-se Ramon Gonzalez y Gonzalez, e era, dizia ele, industrial à margem do rio Bermejo, no extremo norte da Argentina. Possuía, ali, serrarias de madeira, além de algumas fazendas de gado, no sul, onde vivia ultimamente, em luta, sempre, com a natureza bravia.
- O caso, porém, que me atormenta a vida, meu caro senhor, ocorreu no norte, há trinta anos. Eu tinha, então, quarenta.
A noite estava linda, como, em geral, as noites de estio, ao largo da costa francesa, à entrada do Atlântico. Uma lasca de lua, fina e loura, tomava posse do céu, em nome de Maomé, dando-lhe, com as suas estrelas, a feição de grande pavilhão turco. De baixo, do bojo do navio, subia o ronco fatigado das máquinas, no esforço esclerótico das caldeiras. E, de quando em quando, o ruído fresco de uma vaga arrebentada no costado de ferro, e caindo de novo, em forma de chuva grossa, sobre as espumas de outra onda nascida para morrer.
- Foi em Corrientes que eu a conheci, - começou o ancião, enquanto virava o seu terceiro "whisky and soda". - Filha de um velho amigo meu, era quase menina, quando a vi, na visita que fiz ao pai, meu antigo companheiro de colégio. E, ao regressar a Concepción dei Bermejo, onde ficavam as minhas propriedades, levava-a nos olhos, na alma, no coração. Chamava-se Consuelo, era cândida e fugitiva como as espumas deste oceano que rebenta lá fora. Tamanha foi, em suma, a impressão que me deixou, que, um mês depois, eu regressava a Corrientes, para pedir-lhe a mão, em casamento.
- Casou...
- Não; não casei. Consuelo não quis, e o pai, vendo-a vinte e quatro anos mais moça do que eu - ela andava pelos dezesseis - não a contrariou. Conformei-me com isso, mas pedi-lhes que se conservassem meus amigos; que me não esquecessem; que me olhassem como um parente; que me fossem, enfim, visitar em Concepción, para que não ficasse, de tudo aquilo, o menor ressentimento. Dentro em mim, porém, rugia o jaguar do egoísmo, o despeito do leão velho, que não pudera devorar, como sonhara, a corça tenra que vira na campina. Aquele coração havia de, um dia, pertencer-me. Era o meu juramento de morte.
Bateu na mesa, com a sua grande mão de esqueleto, e pediu:
- Garçon, outro "whisky"
Limpou a boca com as costas das mãos, como quem está habituado a beber nas tavernas ou no campo, às pressas, sobre o dorso de um cavalo. E reatou:
- No fim do ano, em Dezembro, foram a Concepción, visitar-me, o pai e a filha. Cerquei-os de gentilezas, de festas, de carinho. Fazíamos passeios longos, os três. E foi em um destes que se deu a desgraça.
- A desgraça?
- Sim, senhor. Tínhamos planejado uma visita ao alto Soledade, onde eu havia adquirido uma grande extensão de terras, para extração de madeiras. O senhor não conhece o alto Bermejo... Conhece? Era floresta virgem, soturna, impenetrada. Desembarcamos em Guahija, pequeno porto para exportação de lenha, e entramos pela mata, viajando a manhã toda. O senhor não imagina o que são aquelas matas! Eu tenho a impressão de que as selvas do seu Amazonas são assim. Árvores que dois homens não abarcam, cerram fileiras, uma ao lado da outra, numa extensão de centenas de quilômetros. E lá em cima, sobre esses milagres de colunas poderosas, é o toldo verde e fechado, que não deixa passar gota de chuva e que o sol só atravessa, ao meio-dia, em forma de claridade... E começava a entardecer, quando fomos assaltados pelos índios xurupinás, que são os mais terríveis toda a região.

- E então?
- Então, foi o infortúnio. Presos, manietados com cipós, fomos conduzidos ao acampamento dos indígenas, sete léguas diante, mato a dentro... E como me recordo, ainda, dessa travessia pela floresta, tarde toda, e depois, noite fechada! Olhos arregalados de terror, os pulsos arroxeados pelos cipós, Consuelo não tinha uma lágrima, e caminhava mais arrastada do que pelos seus próprios pés. Os cabelos, os seus lindos cabelos negros e fartos, libertos da opressão do chapéu de feltro, rolavam-lhe pelos ombros, pelo colo, pela testa, cobrindolhe, às vezes, o rosto todo.
E abrindo um parêntese na narração:
- O senhor já viu coisa que mais excite um homem, despertando-lhe toda a bestialidade, do que o corpo da mulher martirizada? Semi-nua, com os lindos seios morenos pulando quase da camisa esfarrapada, o colo arranhado, o rosto porejando sangue, pelo esforço físico e pelo pudor, Consuelo acordava-me na alma de namorado sem esperança um pensamento diabólico. Eu marchava para a morte, mas marchava calmo, resignado, feliz. Talvez não trocasse, naquele momento, aquele caminho, recoberto de espinhos dilacerantes, pelo mais florido da terra!
Outra incidência:
- Porque, o senhor sabe, acaso, o que é amar uma criatura, sabendo que nunca a possuirá? Já imaginou, porventura, o que é ver, saber, conhecer que a mulher que se ama, que se adora, e que nos despreza, vai cair nos braços de outro homem, dando a outrem, com o seu beijo, com a flor do seu corpo moço, a felicidade que sonhamos para nós? Se sabe, se imagina isso, pode compreender a minha serenidade, ao ver na iminência de ser destruída, sem crime da minha parte, e para sempre, a taça em que eu pretendia beber... Consuelo não seria minha, não me daria o seu beijo, o seu corpo, mas também, não pertenceria, nunca mais, a ninguém...
Mergulhou as mãos, nervosamente, nos magros cabelos grisalhos, arrepiados no crânio, como penas da crista de um pavão, e reatou:
- Antropófagos, os xurupinás devoraram, nesse mesmo dia, os dois homens da condução. No dia seguinte, pela manhã, comeram o meu amigo. Restávamos eu e Consuelo.
Uma pausa, e tornou:
- A mim, eu sabia que me não devorariam tão cedo. Eu estava abatido, cadavérico. A paixão vinha-me devorando, há meses, secretamente, como o fogo ao algodão. Estava quase ossificado. E eu sabia que o índio não come, nunca, a presa nessas condições. Prefere engordá-la, cevá-la, tratando-a durante semanas, durante um ano inteiro.
- E a moça?
- Consuelo era linda e forte. Vi quando a mataram, com uma pancada vigorosa no crânio... Como são feios os miolos, aparecendo, ensangüentados, entre a pasta dos cabelos!... Vi quando um dos seus seios, tão redondo, tão rígido, tombado do jirau, rolou na areia do chão, onde um velho cachorro o tomou nos dentes, indo devorá-lo escondido... Vi quando a esquartejaram, quando a retalharam, quando a distribuíram, em pedaços sangrentos. Impassível, como num sonho, eu via tudo. E Só despertei do meu pasmo, quando um dos índios, o chefe, que tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta de gordura, me veio perguntar, em um gesto, que pedaço eu queria. Olhei as postas de carne fria, sobre as quais as moscas zumbiam, com fúria: a mão miúda, de dedos contraídos, em um dos quais estava, ainda, um anel que eu lhe dera; um dos pés, meio devorado e com as cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça quase esfacelada, pendurada a um esteio pelos cabelos; a sua perna; a sua coxa; um dos seus braços, o mais lindo que eu tenho visto... Indiquei um pedaço de carne roxa, que aparecia, repugnante, entre as vísceras, o qual me foi trazido, e que eu comecei, também, a devorar.
Estremeceu todo, e concluiu, enquanto um arrepio de horror me sacudia:
- Era o coração. Havia cumprido o meu juramento...
E batendo, com força, na mesa:
- "Garçon", outro duplo!

***

Este conto é de domínio público. Para Saber mais sobre o Autor, veja a publicação mais antiga deste aqui no nosso blog, basta clicar aqui

REFERÊNCIAS

CAMPOS, H. O Monstro e Outros contos. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7539>. Acesso em 18, abr, 2017.

Parabéns pelo seu interesse em conhecer uma nova (hi)(e)stória e em aprender algo novo, volte sempre!
Deus seja louvado!!!
DMSF

quarta-feira, 19 de abril de 2017

O Monstro - Humberto de Campos

Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém criadas.

Fonte: pantokrator.org.br

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.
Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa.
Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.
Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivandolhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.
- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente. 

Fonte: prestencao.wordpress.com

- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol
endurecera. E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.

Fonte: Puma Azul.

- Traze mais água! - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.

Adaptado de Cuentos de Terror del Barco Negro. 

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas articularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os urros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

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Este conto é de domínio público. Para Saber mais sobre o Autor, veja a publicação mais antiga deste aqui no nosso blog, basta clicar aqui

REFERÊNCIAS

CAMPOS, H. O Monstro e Outros contos. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7539>. Acesso em 18, abr, 2017.

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DMSF

terça-feira, 18 de abril de 2017

Os Olhos Que Comiam Carne - Humberto de Campos



Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.
Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.
— Entra, Roberto.
O criado empurrou a porta, e entrou.
— Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.
— Não, senhor. Está até acesa..
— Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.
— Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.
— A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.
— Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.
A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.
A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.
Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achavase Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.
Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.
Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:
— Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .
O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.
O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.
Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.
Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.
— Abra os olhos! - diz o doutor.
O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!
De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.
— Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...


***

Conheça um pouco sobre o autor

Humberto de Campos Veras - Academia Brasileira de Letras

Humberto de Campos (H. de C. Veras) foi jornalista, crítico, memorialista e contista brasileiro, nascido em 25 de outubro de 1886, em Miritiba, no Maranhão, hoje essa cidade chama-se Humberto de Campos. Seus pais foram Joaquim Gomes de Faria Veras, um pequeno comerciante e Ana de Campos Veras. De origem pobre, ao apenas seis anos idade, perdeu seu pai e passou a trabalhar no comércio para garantir a sobrevivência sua e de sua mãe. Aos 17 anos foi morar no Pará, iniciando seu contato com as letras, sendo colaborador e redator na Folha do Norte. Em 1910, aos 24 anos, publicou seu primeiro livro, “Poeira”, primeira série, lhe conferindo razoável reconhecimento. Dois anos mais tarde foi morar no Rio de Janeiro, onde cultivou sua carreira jornalística, passando a ganhar desta no âmbito literário, mantendo amizade com vários escritores, como, Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal “O Imparcial”. Tornou-se bastante conhecido em escala nacional por suas crônicas, que eram publicadas em vários jornais de São Paulo, Rio de Janeiro e diversas outras capitais do Brasil; utilizava o pseudônimo de “Conselheiro XX”, chegou a assinar também como Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios.
Em 30 de outubro de 1919, foi eleito para ser o terceiro ocupante da cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras. Foi eleito, em 1920, deputado federal pelo Maranhão, perdendo o mandato em 1930 por conta da revolução do mesmo ano que culminou na dissolução do Congresso. O presidente Getúlio Vargas, grande admirador do escritor, lhe concedeu lugares como de inspetor de ensino e de diretor da Casa de Rui Barbosa. Poeta neoparnasiano, fez parte do grupo da fase de transição anterior a 1922. Foi ainda crítico literário de natureza imressionista. Em 1933, já com a saúde um tanto debilitada, publicou o seu mais célebre livro, “Memórias”, crônicas de sua juventude, o qual foi sucesso de público e de crítica, havendo diversas edições posteriores, durante décadas. O seu Diário Secreto, publicado em revista e depois como um livro, ambos as edições postumamente, causou grande escândalo pela irreverência e malícia em relação a seus contemporâneos. Foi autodidata, grande leitor e erudito. Após anos de enfermidades que o fez perder quase totalmente a visão, além de graves problemas do trato urinário, em 5 de dezembro de 1934, no Rio de Janeiro, faleceu Humberto de Campos, aos 48 anos de idade, em virtude de uma síncope durante uma cirurgia.         


Parabéns pelo seu interesse em conhecer uma nova (hi)(e)stória e em aprender algo novo, volte sempre!
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 DMSF

REFERÊNCIAS

CAMPOS, H. O Monstro e Outros contos. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7539>. Acesso em 18, abr, 2017.

Humberto de Campos: bibliografia. Academia Brasileira. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D221/biografia>. Acesso em 18, abr. 2017.