Pelas margens sagradas do Eufrates,
que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da
Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida,
cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias
sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém criadas.
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Fonte: pantokrator.org.br |
Foi isto no sexto dia da Criação. Com
o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a
sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão
grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam
a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo
começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva
moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos,
assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas,
palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam
ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas
marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente.
Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da
primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam
mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos
outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma
procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques
taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e
gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas
enfiadas na terra mole.
Rebanho monstruoso de um gigante que
os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como
ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava,
célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem
que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco
e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente.
E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que
uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.
Em passo triste, a Dor e a Morte
caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham
lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada;
a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa.
Adivinhando, de longe, a marcha dos
dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As
folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso.
Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer
mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas
inimigas da Vida.
Súbito, como se a detivesse um grande
braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.
Para que mistério - disse, a voz
surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência,
enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos
perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e
observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as
nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso
cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente
dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes
baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto,
ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo,
embalando-o, avivandolhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o
coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço...
Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à
margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.
- Eu darei a água... - disse a Dor,
mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da
corrente.
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Fonte: prestencao.wordpress.com |
- Eu darei o barro... - ajuntou a
Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol
endurecera. E puseram-se a trabalhar.
Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim,
trabalhava inutilmente.
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Fonte: Puma Azul. |
- Traze mais água! - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio,
molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos
magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o
ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve,
da escultora silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o
barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e
levava-a à companheira.
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Adaptado de Cuentos de Terror del Barco Negro. |
Horas depois, possuía a Criação um
bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se
parecia com os outros, sendo, embora, nas suas articularidades, uma
reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do
lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e
trepava, rápido, como os bugios.
O seu aparecimento no seio da
animalidade alarmou a Criação. Os urros, que jamais se haviam mostrado
selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam
nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos,
reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a
terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava,
assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu
espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se
aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam,
unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar
as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do
rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as
cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu
filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.
- Quem o criou fui eu! - dizia a
Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que
farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as
serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte
com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se
contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água,
que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair,
gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A
Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...
***
Este conto é de domínio público. Para Saber mais sobre o Autor, veja a publicação mais antiga
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REFERÊNCIAS
CAMPOS, H. O Monstro e Outros contos. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7539>. Acesso em 18, abr, 2017.
Parabéns pelo seu interesse em conhecer uma nova (hi)(e)stória e em aprender algo novo, volte sempre!
Deus seja louvado!!!
DMSF
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