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"The Tomb To Die For" by R.J. Ivankovic |
A Tumba (The
Tomb) foi a primeira ficção escrita por Howard Phillips Lovecraft após
tornar-se adulto. Esse conto foi escrito no verão de 1917, mas foi publicado
pela primeira vez em 1922, na revista The
Vagrant, em sua edição de março daquele ano.
O conto trata de um relato de Jervas Dudley, que
encontra-se em um lugar como consequência de atividades bem peculiares e fora
do comum, mas principalmente por conta de um episódio em particular que
tornou-se o estopim para a mudança de sua vida, a qual sempre dotou-se de
diversos desejos e ímpetos que flertam com o sobrenatural e que às vezes, mesmo
que não totalmente revelado pelo narrador, mostra-se profundamente além do
natural ou normal para os olhos daqueles se limitam pela sua mente comum.
O ambiente é repleto de referências mitológicas,
com menções à cultura erudita clássica, o enredo bem envolvente e passível de
curiosidade encaminha o leitor a um clímax muito bem trabalhado que culmina no
estado no qual se encontra o narrador desde o início da estória.
Um excelente conto do grande gênio da literatura
fantástica e inspirador para grandes escritores e amantes do gênero.
IMPORTANTE: Por favor,
leia a mensagem após o conto.
Dados Técnicos
Nome Original:
The Tomb.
Autor: Howard Phillips
Lovecraft.
Tradutor (da versão aqui postada): Renato Suttana.
Narrativa:
Primeira pessoa.
Período de escrita: Verão de 1917.
Primeira Publicação: Março de 1922.
Veículo da Primeira
Publicação: Revista The Vagrant.
Personagens: Jervas Dudley, pai de Jervas, espião e Hiram.
Gênero: Literatura fantástica.
Situação de Direitos Autorais: Domínio Público.
Leia agora o conto completo. Desfrute, entusiasta horror!
A Tumba
H. P. Lovecraft (1917).
Tradução: Renato Suttana.
Ao relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento
neste asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual criará
dúvidas naturais acerca da autenticidade de minha narrativa. É grande
infortúnio o fato de que o grosso da humanidade seja limitado demais, em sua
visão mental, para pesar com paciência e inteligência esses fenômenos isolados,
vistos e sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais
jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que
não existe nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as
coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e
mentais de cada indivíduo, por meio dos quais nos tornamos conscientes delas;
mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão
superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.
Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido
um sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida
comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio
social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado desde sempre em reinos que
não pertencem ao mundo visível, passando minha juventude e minha adolescência
debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os campos e
bosques das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses
livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros rapazes
leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer mais
detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca de meu intelecto
que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam. Basta-me
relatar os eventos, sem analisar as causas.
Disse que vivi afastado do mundo visível, mas não disse que vivi
sozinho. Isso nenhuma criatura humana poderia fazer, desde que, à falta da
camaradagem dos vivos, inevitavelmente se entra na companhia de coisas que não
são – ou não mais estão – vivas. Próximo à minha casa existe um vale arborizado
bastante singular, em cujas profundezas crepusculares eu passava grande parte de
meu tempo a ler, a pensar e a sonhar. Pelas suas encostas cobertas de musgo
ensaiei meus primeiros passos de infância, e em volta de seus carvalhos
grotescamente retorcidos se teceram minhas primeiras fantasias de juventude.
Conheci as dríades dessas árvores e não raro assisti às suas danças selvagens
sob os raios vacilantes de uma lua pálida, mas acerca dessas coisas não devo
falar agora. Falarei apenas da tumba solitária em meio ao matagal mais escuro
do declive – a tumba abandonada dos Hydes, uma velha e nobre família cujo último
descendente direto fora depositado em seus negros recessos muitas décadas antes
de eu nascer.
O pórtico a que me refiro é feito de granito ancestral, lavado e
descolorido pelas névoas e pela umidade de muitas gerações. Escavada na
encosta, apenas a entrada da construção é visível. A porta – uma pesada e
proibitiva laje de pedra – pende de dobradiças de metal enferrujado e, ligeiramente
aberta, jaz lacrada por pesadas correntes de ferro e cadeados, de acordo com um
repulsivo costume de meio século atrás. A residência do clã cujos descendentes
estão enterrados aqui coroou certa vez o declive no qual está a tumba, mas há
muito tombou vitimada pelas chamas que desceram do céu na forma de um
relâmpago. Daquela tempestade que à meia-noite destruiu essa lúgubre mansão os
habitantes mais velhos da região às vezes falam entre sussurros e inquietações,
aludindo ao que chamam de “ira divina” de um modo que nos últimos anos fez crescer
vagamente o fascínio que eu sentia pelo sepulcro encravado na mata. Um homem
apenas pereceu no fogo. Quando o último dos Hydes foi enterrado neste local de
sombra e quietude, a triste urna de cinzas veio de uma terra distante, para a
qual a família se mudou quando a mansão pegou fogo. Não resta ninguém para
colocar flores diante do portal de granito, e muito poucos se dão ao trabalho
de enfrentar as sombras depressivas que parecem guardar estranhamente as pedras
lavadas pelas chuvas.
Jamais esquecerei aquele entardecer em que, pela primeira vez, me
deparei com a semioculta casa da morte. Foi em pleno verão, quando a alquimia
da natureza transmuda a paisagem silvestre numa única e quase homogênea massa
de verde, quando os sentidos estão quase intoxicados com os mares afluentes de
verdura úmida e os odores sutilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Numa
tal ambientação a mente perde suas perspectivas, o tempo e o espaço tornam-se
triviais e irreais, e ecos de um esquecido passado pré-histórico batem
insistentemente contra a consciência enlevada.
Durante o dia todo eu tinha estado a perambular através dos
bosques místicos do vale, a conceber pensamentos que não há que discutir e a
conversar com coisas que não há que nomear. Com apenas dez anos, eu tinha visto
e ouvido muitas maravilhas que a turba desconhecia e já era espantosamente maduro
em certos aspectos. Quando, depois de abrir caminho entre duas touceiras de
arbustos, subitamente deparei com a entrada da cripta, não tinha o menor conhecimento
acerca do que encontrara. Os blocos negros de granito, a porta curiosamente semicerrada
e os entalhes funerais sobre o arco não despertaram em mim quaisquer
associações de caráter fúnebre ou terrível. Sobre sepulturas e tumbas eu sabia
e devaneara bastante, mas fora poupado, devido ao meu temperamento peculiar, de
todo contato com adros e cemitérios. A estranha casa de pedra escondida entre o
mato na encosta constituía para mim apenas uma fonte de interesse e
especulação, e seu interior frio e úmido, para dentro do qual eu espiava
através da excruciante abertura, não me sugeria nada de morte ou decadência.
Mas naquele instante de curiosidade nasceu o desejo loucamente irracional que
me trouxe até este inferno de confinamento. Espicaçado por uma voz que deve ter
vindo da alma medonha da floresta, tomei a decisão de penetrar na escuridão que
me convocava, a despeito das pesadas correntes que impediam minha passagem. Na
luz evanescente do dia chacoalhei insistentemente os obstáculos enferrujados,
na esperança de abrir a porta de pedra, e até mesmo experimentei espremer meu corpo
magro através do pouco espaço disponível, mas essas tentativas não surtiram
efeito. Curioso no início, tornei-me frenético e, quando ao anoitecer retornei
a casa, jurara aos cem deuses da mata que a qualquer custo um dia haveria de
forçar minha entrada nas profundezas escuras e gélidas que pareciam me chamar.
O médico de barba grisalha que todos os dias vem até meus aposentos certa vez
disse a um visitante que essa decisão marcou o começo de uma lamentável
monomania; mas deixarei o julgamento final a cargo de meus leitores, depois que
souberem de tudo.
Os meses subseqüentes à minha descoberta foram gastos em
tentativas fúteis de forçar o complicado cadeado da cripta semicerrada, bem
como em perquirições cuidadosas e vigilantes acerca da natureza e da história
da construção. Com os ouvidos tradicionalmente receptivos de um menino, aprendi
muito, embora uma discrição habitual não me permitisse contar a ninguém sobre o
meu conhecimento ou minha resolução. Será talvez importante mencionar que não
fiquei nem um pouco surpreso ou aterrorizado com a natureza do pórtico. Minhas
idéias bastante originais acerca da vida e da morte tinham me levado a
associar, de maneira vaga, a argila fria com o corpo que respira, e senti que a
grande e sinistra família da mansão incendiada estava de algum modo dentro do
espaço de pedra que eu procurava explorar. Lendas murmuradas acerca de ritos
exóticos e festins pagãos de épocas passadas, ocorridos dentro do vestíbulo
ancestral, despertaram em mim um novo e irresistível interesse pela tumba, em
frente a cuja porta eu me sentaria durante horas diariamente. Um dia acendi uma
vela diante da entrada obstruída, mas nada pude ver a não ser um lance
descendente de degraus de pedra úmida. O odor do lugar me repelia e ao mesmo
tempo me enfeitiçava. Sentia como se já o tivesse conhecido num passado remoto,
anterior a toda lembrança, anterior mesmo à habitação deste corpo que agora
possuo.
No ano seguinte àquele em que vi a tumba pela primeira vez,
deparei-me, no sótão cheio de livros de minha casa, com uma tradução corroída
das Vidas de Plutarco. Ao ler a vida de Teseu, fiquei por demais impressionado
com a passagem em que se fala da enorme pedra sob a qual o menino herói haveria
de encontrar as pistas sobre seu destino assim que se tornasse adulto o suficiente
para erguer o grande peso. A lenda teve o efeito de aplacar minha aguda
impaciência em atravessar o portal, fazendo-me sentir que a hora ainda não
chegara. Mais tarde – eu disse a mim mesmo – crescerei e adquirirei força e
habilidade que me permitirão destrancar facilmente a porta que os grilhões
encerram, mas até lá seria melhor me conformar com o que me parecia ser a
vontade do destino.
Com efeito, minhas vigílias diante do portal úmido tornaram-se
menos persistentes, e grande parte do meu tempo era despendida em outras
atividades igualmente estranhas. Às vezes eu me levantava em silêncio durante a
noite, saindo às escondidas para andar por esses cemitérios ou locais de
sepultamentos dos quais meus pais me mantiveram afastado. O que eu fazia lá não
posso dizer, pois agora não estou seguro de algumas coisas, mas sei que no dia
seguinte a essas rondas noturnas eu costumava pasmar os que me cercavam
exibindo conhecimento de assuntos quase esquecidos durante muitas gerações. Foi
depois de uma noite dessas que surpreendi a comunidade com uma idéia inusitada
acerca do enterro do rico e celebrado Squire Brewster, personagem da história
local que fora sepultado em 1711 e cuja lousa, exibindo um crânio gravado e
ossos cruzados, ia lentamente se transformando em pó. Num lance de fantasia
infantil, aventei não somente que o coveiro, Goodman Simpson, teria roubado os
sapatos de fivelas de prata, as calças de seda e as roupas de baixo de cetim do
falecido antes do enterro, mas que o próprio Squire, não totalmente inanimado,
teria se virado duas vezes em seu caixão coberto de terra no dia seguinte ao do
sepultamento.
Mas a ideia de entrar na tumba nunca me saiu da cabeça, sendo
mesmo estimulada pela inesperada descoberta genealógica de que minha
ascendência materna mantinha um ligeiro vínculo com a supostamente extinta
família dos Hydes. Último de minha raça paterna, eu era igualmente o último
dessa linhagem mais antiga e mais misteriosa. Comecei a sentir que a tumba era
minha e a esperar ansiosamente pelo momento em que poderia atravessar a porta
de pedra e descer na escuridão por aqueles degraus de pedra lodosa. Adquiri o
hábito de ouvir com atenção através da porta semiaberta, preferindo as horas da
quietude noturna para essa estranha vigília. Quando adquiri mais idade, abri
uma pequena clareira no matagal que recobria a face do declive, permitindo que
a vegetação circundante cercasse e envolvesse a abertura como uma espécie de cerca
viva selvagem. Essa clareira se tornou meu templo, a porta fechada meu
santuário, e era aqui que eu me deitava sobre o solo musgoso a pensar estranhos
pensamentos e a sonhar sonhos estranhos.
A noite da primeira revelação estava bastante abafada. Devo ter
adormecido de cansaço, pois foi com uma clara sensação de despertar que ouvi as
vozes. Hesito em falar desses acentos e timbres, não falarei de sua qualidade,
mas posso dizer que apresentavam espantosas diferenças de vocabulário,
pronúncia e modos de enunciação. Cada matiz dialetal da Nova Inglaterra, desde as
ásperas sílabas dos colonos puritanos até a retórica precisa de cinqüenta anos
atrás, parecia representado naquele colóquio sombrio, conquanto somente mais
tarde eu notasse esse fato. Naquela hora, decerto, minha atenção foi desviada
desse aspecto por um outro fenômeno – um fenômeno tão fugaz que eu não poderia
jurar acerca de sua realidade. Mal me dei conta de ter despertado, uma luz foi
imediatamente apagada dentro do sepulcro escuro. Não creio que fiquei perplexo
ou apavorado, mas sei que fui transformado profunda e permanentemente naquela noite.
Logo que voltei a casa, dirigi-me imediatamente a uma arca carcomida no sótão,
onde encontrei a chave que no dia seguinte removeu com facilidade o obstáculo
contra o qual me bati em vão durante tanto tempo.
Foi sob o brilho de um suave entardecer que entrei pela primeira
vez na cripta da encosta abandonada. Como se enfeitiçado, meu coração vibrava
de um contentamento que não sei descrever. Assim que fechei a porta atrás de
mim e desci os degraus encharcados à luz de uma vela, era como se eu já soubesse
o caminho, e embora a vela crepitasse na atmosfera sufocante do lugar, eu me
sentia singularmente em casa naquele ar mofado e sepulcral. Olhando ao meu redor,
avistei muitas lajes de mármore sustentando esquifes ou os restos de esquifes.
Alguns estavam lacrados e intactos, mas outros se tinham quase desfeito,
deixando apenas as alças de prata e as placas isoladas em meio a alguns
montículos singulares de pó. Sobre uma das placas li o nome de Sir Geoffrey
Hyde, o qual viera de Sussex em 1640 e morrera aqui uns poucos anos mais tarde.
Numa alcova conspícua havia um caixão desocupado e bastante bem preservado, adornado
apenas com um nome que me fez sorrir e estremecer. Um impulso inusitado me
levou a subir na laje larga, a apagar minha vela e a me deitar dentro da caixa
vazia.
À luz cinzenta da aurora cambaleei para fora da cripta e tranquei
a corrente da porta atrás de mim. Já não era mais um jovem, embora apenas vinte
e um invernos houvessem esfriado minha estrutura corpórea. Aldeões madrugadores
que observaram minha caminhada até casa olhavam-me de maneira estranha e
espantavam-se com os sinais de obscena euforia que descobriam num homem cuja
vida era conhecidamente solitária e austera. Não compareci perante meus pais
sem antes passar por um sono longo e restaurador.
Desde então passei a ir à tumba a cada noite, vendo, ouvindo e
fazendo coisas que não devo jamais recordar. Meu modo de falar, sempre
suscetível às influências do ambiente, foi a primeira coisa a sucumbir à
mudança, e o arcaísmo de dicção que subitamente adquiri foi logo notado. Mais
tarde, um atrevimento e uma audácia inesperados apareceram em meu
comportamento, até que inconscientemente comecei a tomar os modos de um homem
do mundo, não obstante meu passado de reclusão. Minha língua, silenciosa de
costume, deslizava com a graça fácil e volúvel de um Chesterfield ou com o
cinismo ateu de um Rochester. Passei a exibir uma peculiar erudição, totalmente
distinta do saber fantástico e monacal sobre o qual me esfalfara em minha juventude,
bem como a cobrir as guardas de meus livros com fáceis epigramas de improviso,
os quais evocavam acentos de Gay, Prior e a engenhosidade vivaz dos augustanos.
Certa manhã, durante o desjejum, cheguei à beira do desastre, ao declamar com
acentos de efusão palpavelmente alcoólica de uma jovialidade setecentista, uma
peça de jocosidade georgiana nunca registrada em livro, que dizia mais ou menos
o seguinte:
Tragam
aqui, meus rapazes, seus canecos de cerveja
E
bebam ao dia de hoje, antes que já não mais seja.
Encham
seus pratos de bifes, empilhando-os em montanha,
Pois
só beber e comer é o que da vida se ganha.
Encham
suas taças,
Pois
a vida passa,
E
depois ao rei e à amada não há quem um brinde faça.
O
nariz de Anacreonte era vermelho, se diz;
Mas
o que é um nariz vermelho quando se é alegre e feliz?
Melhor
ser vermelho agora – Deus me castigue! – que estar
Branco
como um lírio ou morto antes de o ano acabar!
Venha,
Betty, em festa,
Beije-me
na testa;
Filha
de estalajadeiro no inferno não há como esta!
Que
o jovem Harry ainda esteja de pé nos causa surpresa,
Logo
há de perder a linha e entrar debaixo da mesa;
Mas
encham bem suas taças, passem-nas de mão em mão,
Melhor
embaixo da mesa do que debaixo do chão!
Que
reine o festim,
Que
bebam por mim:
Sob
sete palmos de terra não se ri tão bem assim!
Que
o diabo me carregue, se mal me agüento de pé
e,
com todos os demônios, se de mim ainda dou fé!
Aqui,
patrão, mande Betty chamar um carro, que eu vou
correr
para casa, enquanto minha esposa não chegou!
Alguém
me sustente,
Antes
que eu me sente:
Que
enquanto em cima da terra estou feliz e contente.
Por essa época é que adquiri meu medo atual ao fogo e aos
temporais. Indiferente até então a tais coisas, tinha por eles agora um
indizível horror e me retiraria para os recantos mais profundos da casa assim
que nos céus se anunciassem quaisquer sinais de eletricidade. Um de meus
abrigos favoritos durante o dia era o porão arruinado da mansão que se
incendiara, e na imaginação eu reconstituía a estrutura tal qual teria sido em
seus primórdios. Em certa ocasião, deixei pasmado um aldeão ao conduzi-lo
secretamente até um sub-porão de teto baixo, de cuja existência eu parecia
saber a despeito do fato de ele ter ficado oculto e esquecido por muitas
gerações.
Por fim aconteceu o que eu há muito temia. Meus pais, alarmados
com a alteração de maneiras e aparência de seu único filho, começaram a exercer
sobre meus movimentos uma amável espionagem, a qual ameaçava resultar em
desastre. Eu nada dissera acerca de minhas visitas à tumba, tendo guardado meu
propósito secreto com zelo religioso desde a infância, mas agora me via forçado
a ter cautela quando penetrava os labirintos da depressão brenhosa, não fosse
estar sendo seguido às ocultas. Minha chave para a cripta eu a mantinha pendurada
num cordão no pescoço, como um segredo que só eu conhecia. Nunca trouxe para
fora do sepulcro qualquer das coisas que encontrei por entre aquelas paredes.
Certa manhã, quando saí da tumba úmida e prendi as correntes do
portal com pouca firmeza, lobriguei numa macega próxima a face horrorizada de
um bisbilhoteiro. Por certo o fim estava próximo, pois meu recanto fora
descoberto e o objetivo de minhas jornadas noturnas fora revelado. O homem não
me abordou, de modo que me apressei a chegar a casa, a fim de descobrir o que
ele reportaria ao meu pai preocupado. Seriam minhas incursões para além da porta
trancada reveladas ao mundo? Imaginem com que espanto deleitoso ouvi meu espião
informar a meu pai, num cauteloso sussurro, que eu tinha passado a noite na clareira
em frente à tumba, meus olhos baços de sono fixados na fenda da porta não de
todo fechada! Que milagre ocorrera a ponto de iludir assim esse observador?
Convenci-me de que um agente sobrenatural me protegera. Na audácia que tal
circunstância, enviada do céu, me dava, passei a ir, sem nenhuma dissimulação,
à cripta, na confiança de que ninguém testemunharia minha entrada. Durante uma
semana provei à saciedade as alegrias daquele convívio sepulcral, o qual não descreverei,
até que a coisa aconteceu e me vi arrastado para este maldito lugar de tristeza
e melancolia.
Não devia ter me aventurado a sair naquela noite, pois indícios de
trovões relampejavam nas nuvens e uma fosforescência infernal subia do pântano
ao fundo do vale. Também o chamado dos mortos estava diferente. Em vez da tumba
na encosta, era o demônio que presidia o porão chamuscado no topo da elevação
que me acenava com dedos invisíveis. Quando saí de um matagal intermediário
para o plaino diante da ruína, descobri sob o luar nebuloso uma coisa pela qual
sempre esperara vagamente. A mansão, destruída havia um século, mais uma vez se
erguia no alto como uma visão arrebatadora, todas as janelas a brilhar com o
esplendor de muitas velas. Pela longa estrada rodavam as carruagens da elite de
Boston, enquanto a pé se aproximava um numeroso ajuntamento de janotas
empoados, provenientes das mansões vizinhas. Misturei-me a essa multidão,
conquanto estivesse certo de pertencer mais ao dos anfitriões que ao dos hóspedes.
Para além do saguão havia música, gargalhadas e vinho em todas as mãos.
Reconheci muitas faces, e as teria reconhecido melhor ainda se as visse
ressequidas ou carcomidas pela morte e pela decomposição. Em meio a essa turba
selvagem e estouvada, eu era o mais selvagem e o mais debochado. Alegres
blasfêmias jorravam de meus lábios, e em chocantes gracejos eu desprezava as
leis de Deus ou da natureza.
Súbito, o estrondo de um trovão, muito mais forte que a algazarra
do imundo festim, rompeu o telhado e fez baixar um enorme silêncio sobre a companhia
turbulenta. Línguas vermelhas de fogo e golfadas de calor ardente envolveram a
casa, e os participantes, tomados pelo pavor de uma iminente calamidade que
parecia transcender os limites da natureza desgovernada, fugiram aos gritos
noite adentro. Somente eu permaneci, preso ao meu assento por um medo
humilhante que nunca antes sentira. E então um segundo horror tomou conta de
minha alma. Queimado vivo até às cinzas, meu corpo disperso aos quatro ventos,
eu nunca poderia jazer no túmulo dos Hydes! Não estava meu caixão já preparado
para mim? Não tinha eu o direito de descansar até a eternidade entre os
descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Ai! eu exigiria minha herança de morte, mesmo
que minha alma vagasse através das eras à procura de uma nova habitação
corpórea, que a representaria sobre aquela laje desocupada na alcova da cripta.
Jervas Hyde não deveria jamais compartilhar do triste destino de Palinuro!
Quando o fantasma da casa incendiada desapareceu, encontrei-me a
gritar e a me contorcer loucamente nos braços de dois homens, um dos quais era
o espião que me seguira até a tumba. A chuva caía torrencialmente, e sobre o
horizonte, na direção sul, viam-se os clarões dos relâmpagos que há pouco
tinham passado sobre nossas cabeças. Meu pai, a face transtornada de pesar,
estava ao lado, enquanto eu ordenava aos berros que me colocassem na tumba, admoestando
freqüentemente os meus capturadores para me tratarem com a máxima consideração.
Um círculo escuro sobre o piso do porão arruinado sugeria uma carga violenta
dos céus, e era nesse local que um grupo de aldeões curiosos estava a examinar
com lanternas uma caixa pequena de fabricação antiga, que a explosão do raio
trouxera à luz.
Cessando minhas contorções fúteis e sem sentido, observei os
espectadores enquanto olhavam o pequeno tesouro e obtive permissão para
compartilhar de suas descobertas. A caixa, cujo fecho tinha se partido com o
golpe que a desenterrara, continha alguns papéis e objetos de valor, mas eu só
tinha olhos para uma coisa. Tratava-se da miniatura em porcelana de um homem
jovem usando uma peruca caprichosamente encaracolada, a qual portava as
iniciais “J. H.” Quanto à face, sua conformação era tal como se eu estivesse a
me olhar no espelho.
No dia seguinte, trouxeram-me a este quarto que tem grades nas
janelas, mas tenho sido informado sobre certas coisas por um homem velho, de
mentalidade rude, por quem nutro simpatia desde a infância, o qual, tal como eu
mesmo, também é amante de cemitérios. O que ousei relatar de minhas experiências
na cripta trouxe-me apenas sorrisos de piedade. Meu pai, que me visita com
freqüência, assevera que em tempo algum atravessei o portal lacrado pelas correntes
e jura que, quando o examinou, o cadeado enferrujado tem estado como sempre
esteve ao longo de cinqüenta anos. Chega mesmo a dizer que toda a comunidade
sabia de minhas idas ao túmulo e que eu era muitas vezes vigiado enquanto
dormia na clareira da encosta, meus olhos semicerrados fixos na fenda que
conduz ao interior. Contra essas afirmações não tenho nenhuma prova tangível,
até porque a chave para o cadeado se perdeu na luta durante aquela noite de horrores.
As coisas estranhas do passado que aprendi durante aqueles encontros noturnos
com os mortos ele as reputa como meros frutos de minha vida pregressa de
onívora perscrutação sobre volumes antigos da biblioteca da família. Não fosse
pelo meu velho serviçal Hiram, eu hoje estaria convencido de minha loucura.
Mas Hiram, leal até o fim, conservou sua fé em mim e fez aquilo
que me impele a trazer a público pelo menos uma parte de minha história. Há uma
semana, ele quebrou o cadeado que prende a porta da tumba em sua posição
perpetuamente semicerrada e desceu com uma lanterna até as profundezas
sombrias. Sobre uma laje, numa alcova, encontrou um velho mas ainda vazio caixão
cuja inscrição deslustrada contém uma simples palavra: Jervas. Nesse caixão e
nessa cripta é que me prometeram que serei enterrado.
***
Sobre o Tradutor
Renato Suttana é doutor
em Letras e professor de Literatura Brasileira na Universidade Estadual do
Centro-Oeste (UNICENTRO), em Guarapuava-PR. É autor de Uma poética do
deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de
mestrado, PUC-MG, 1995), de João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da
modernidade (tese de doutorado, UNESP-Assis, 2003) e do livro de poesias Visita
do fantasma na noite (2002). Suttana também mantém seu site na web:
http://www.arquivors.com. Contatos com o tradutor podem ser feitos pelo e-mail:
rsuttana@arquivors.com
Fonte
Este conto foi baixado e postado neste blog a partir do arquivo em
formato pdf disponível no SiteLovecraft (http://www.sitelovecraft.com/).
Os arquivos são domínio público, logo não estamos ferindo nenhuma licença ou
direitos autorais. Agradecemos ao SiteLovecraft e ao tradutor Dr. Renato
Suttana, por divulgarem livremente cultura de boa qualidade com são as estórias
de Lovecraft. Aqui também buscamos disponibilizar o máximo de conteúdo sem
cobrar nada por isso.
Uma Mensagem Importante
Jervas Dudley, o protagonista deste conto de
H.P. Lovecraft, teve um fim triste e trágico. Acabou considerado louco por
todos, incluindo seu pai, sendo confinando em um asilo. O jovem Jervas
blasfemou e desprezou as regras de Deus e da Natureza.
Teriam sido estas as causas de seu fim horrível?
Talvez sim, pois seria um tipo de castigo, isso dependeria da intensidade de
seus pecados citados e da sua atitude, por exemplo, em não buscar perdão e não
tentar se redimir. Mas talvez não, poderia ser um tipo de provação, mas que ele
resolveu não enfrentar e apenas aceitar, tornando-se uma vítima de uma
oportunidade de crescer, optando por sofrer, ao invés de superar a situação e
tornar-se mais forte, maduro.
Nunca se deve blasfemar, se você o fez,
desculpe-se com Deus. Não blasfeme contra o Espírito Santo, pois para esse tipo
de blasfêmia não há perdão.
Também não despreze a Deus, às suas regras, leis
e mandamentos, se você faz isso, está decepcionando a Deus, pois Ele entregou o
seu próprio filho, Jesus, para morrer por cada um de nós, incluindo você, e o
que você faz? Despreza-o? Não faça isso, desculpe-se com Deus se você já o
desprezou, ele te perdoará, mas não o faça novamente.
Tente criar uma ligação, uma relação, um vínculo
com Deus, Ele é o seu Criador, Salvador, Inspirador, Pai e melhor amigo, seja o
melhor possível para Ele, pois você pode ter certeza de que Ele é maravilhoso
contigo.
Por mais que a vida seja dura, e realmente é,
Ele está te ajudando, e cada situação difícil será como uma oportunidade para
você crescer, se tornar mais forte, como se estivesse passando por um
treinamento, tendo Deus como seu guia e seu aliado em cada batalha. Como se
você fosse uma flor crescendo no deserto, tendo Deus como seu o homem que te
rega e te deixa ficar cada vez mais forte, para um dia se tornar o mais belo
(em todos os sentidos possíveis) possível.
O destino de Jervas não é nada comparado ao
daqueles que negam a Cristo, pois o resultado disto será um sofrimento que perdurará
para sempre, enquanto aqueles que o seguem terão a vida eterna com Deus.
Mas não esteja com Deus apenas para se agradar
com a vida eterna, fique com Ele porque você é uma criatura feita por Ele e
para Ele, apenas seja grato e o siga, Ele é o melhor que existe dentre tudo o
que há nesse existir, pois ele é o Autor da Existência.
João disse referindo-se a confessarmos,
assumirmos para Deus, que pecamos, e demonstrando arrependimento: “Se
confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para perdoar os nossos
pecados e nos purificar de toda injustiça.” (1 João, 1:9).
“Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu
Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida
eterna.” (João, 3:16).
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Fonte da Imagem: Blog Com Shalom |
Referências
A TUMBA. hplovecraft.com.br.
Disponível em: <http://hplovecraft.com.br/contos/a-tumba/>. Acesso em 20, set. 2017.
Bíblia Online. Disponível
em: <https://www.bibliaonline.com.br/>. Acesso em 12, set. 2017.
www.sitelovecraft.com. Acesso em 20,
set. 2017.
Parabéns pelo seu interesse em conhecer uma nova (hi)(e)stória e em aprender algo novo, volte sempre.
Deus seja louvado!!!
DMSF.
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